Rigor Mortiis

Para qualquer estudante de direito o 4º ano era o ano macabriis, em que muitos estudantes chumbavam pela primeira vez, outros tantas sofriam as passas do inferno nas orais... e claro, tínhamos de conciliar o horário impraticável de DIPC (Direito Internacional Privado e Comunitário) com as aulas teóricas de Medicina Legal.

Nas aulas teóricas de Medicina Legal, para aqueles que não estavam para aturar o "já lhe disse que o Senhor a mim tem de me tratar por Professor Doutor ou Senhor Professor Doutor" Nuno Castello Branco, tinham sempre a hipótese de ouvir histórias hilariantes sobre actos sexuais de relevo com animais: "a galinha era a única testemunha, assim como a infeliz vítima", vide fotografia da vítima (galinha com banda negra a tapar os olhos, para não ser facilmente identificada); e os mais estranhos e bizarros fétiches de que aqueles tipos tinham conhecimento: "aqui fotografia do estudante (de direito, vocês são todos muito estranhos), vestido de bailarina, com o dito de fora, choke 'till death come..."

Mas continuando a preciosa narrativa, para além das aulas teóricas, que eram um mimo, como puderam constatar pela descrição supra referida, ainda tínhamos de assistir obrigatoriamente a duas autópsias (aulas práticas, portanto)...

Começava então a correria aos lencinhos perfumados da Renova (mentol ou alfazema) e ao gabinete de medicina legal a perguntar se havia corpo, seguida automaticamente da pergunta, qual Riffel: "está inteiro ou em pedaços?"

Confesso que tive imensa sorte nos cadáveres que me calharam na rifa: nenhum veio embalado em saquinhos, eram todos velhos, assim para o acabados, e tinham bom aspecto: nada de avançados estado de putrefacção.

Por razões de economia de espaço e tempo relatarei apenas a primeira experiência.

Sentados o mais afastados possível da zona de acção, vemos entrar a médica que comanda a operação de retalhamento, o carniceiro chefe, com um cabelinho oleoso ondulado de meter nojo, seguidos da estagiária erasmus espanhola, a mastigar pastilha elástica relaxadíssima (sim, de boca aberta. Sim, sem máscara).

O cadáver é deitado na maca, completamente despojado de bens terrenos (nuzinho, tuuuuuudo à mostra!), e logo ali começa a operação de retalhamento: incisão longitudinal seguida da remoção dos órgãos internos, inclusivé do conteúdo estomacal para análise.

O cheiro é pavoroso, cheira a carne de porco em avançado estado de decomposição, e a estagiária, ali, a mascar pastilha serenamente.

É usada uma vulgar concha de sopa para remover o sangue da cavidade toráxica, e o coração é retirado, pesado numa vulgar balança de cozinha, e medido.

Começam a fazer incisões na cabeça, e a remover o escalpe, desde a testa até à nuca "schreeeeeee", seguido do "vriiiiiimmm" da serra num movimento circular sobre o osso craneano. O cérebro é removido num "ploc", e colocado numa tábua branca de cozinha, onde é cortado em fatias fininhas, com uma vulgar faca de pão: "como podem observar não há lesões na massa encefálica...".

Eu já só olhava de esguelha, atarefadíssima a tirar apontamentos. Nunca tirei tantos apontamentos na minha vida... E quando nada havia a escrever rabiscava desenhos de estrelinhas e florzinhas nos cantos, e jogava ao galo, enquanto o lencinho perfumado repousava apertadíssimo contra as narinas... e respirava devagarinho, em surdina, concentradíssima em respirar bem, suavemente, doucement, uma coisa de cada vez...

Podem sair!

FUI!