Não é que seja particularmente esperta, inteligente, mesmo brilhante, mas fico muitas vezes incomodada com a estupidês alheia. É certo que também fico atónita com a minha própria estupidês, mas isso já são outras conversas.
Neste caso muito me espanta que em relação ao aborto haja movimentos pró-vida que usem argumentos tão falaciosos como o n.º de mulheres que ficam traumatizadas depois de um aborto, e especialmente um movimento pró-vida que se intitula "Contra a discriminação".
Sustenta este último movimento que são contra todos os tipos de discriminação, especialmente aquela que decide que um ser de menos de 10 semanas possa ser eliminado, só por decisão unilateral da mãe. Se este movimento tivesse o dom da palavra e um pouco de esperteza teria dito qualquer coisa como: "Somos contra esta forma de discriminação porque não achamos justo que embriões com menos de 10 semanas possam ser abortados. Achamos que o factor tempo não deve intervir nestas questões da licitude do aborto."
Mas nestas coisas dos movimentos cívicos, é recolher assinaturas, muitas vezes não se sabe bem para quê, apresentar uma proposta titubiante e voilá! Mais um movimento! Pelo que a cena da descriminação, estão a ver, não tem lá grande explicação, para além dos membros do movimento serem portugueses de 2ª e 3ª geração e saberem, por terem sentido na pele, o que é a descriminação.
Poderia aqui invocar conflito de interesses, com toda a justiça, e dizer que aquelas pessoas desconhecem que a vertente mais importante do princípio da igualdade é justamente tratar de forma igual o que é igual, e de forma diferente aquilo que é diverso, mas com isso entrariamos em considerações eminentemente teóricas e chatas, coisa que ainda não queremos fazer.
Digo ainda, porque acho essencial hoje fazer-me passar por chata e dar um sermão sobre o que é realmente importante na questão do aborto.
1º- Com o referendo não vamos aprovar uma descriminalização do aborto.
Com efeito, o crime de aborto continua ser previsto no CP Português, com muito poucas alterações, diga-se de passagem. Tudo isto, porque que nome se dá ao facto de 3º que voluntariamente faz a mulher grávida abortar contra a sua vontade? Esse tipo de actos tem de continuar a ser criminalizado, sob pena do namorado dar uma facada no baixo-ventre da namorada e só ser punido com ofensas à integridade física agravadas.
De há muitos anos para cá que está previsto no CP causas de exclusão da ilicitude, ou seja, o aborto não constitui crime se praticado ao abrigo dessa norma, desde que preencha certos requisitos: como constituir perigo para a vida da mãe; o feto ter má-formações; a gravidês ter tido origem em crime de violação.
2º-O aborto não é uma violação do direito à vida.
Violação do direito à vida é obrigar um doente terminal e não viver, recusando-lhe a eutanásia.
Conforme consta do CP Português e restantes CP comunitários o bem jurídico que se tutela com o crime de aborto é a "Vida intra-uterina". Os senhores informem-se antes de se porem a discutir nos cafés.
Acresce que o bem jurídico vida não é um bem jurídico pleno e absoluto, como o demonstram as administias por crimes de guerra, o homicídio privilegiado, o homicídio negligente, o auxílio ao suicídio... e recentemente, na comunidade internacional o enforcamento de Saddam Hussein. A vida só é absoluta quando nos convém.
3º-O referendo só vai incluir na anterior previsão das causas de exclusão do crime de aborto o factor temporal.
Na verdade, a articulação actual é idêntica á usada por muitos países europeus em que é admitido às mulheres a possibilidade de escolher entre serem miseráveis e terem mais um filho, ou serem miseráveis e não terem mais este.
Com a nova articulação, as mulheres poderão escolher abortar sem terem de invocar mais fundamentos que o embrião não ter mais de 10 semanas, e fazerem-no de forma informada, livre e consciente.
Nenhuma mulher faz um aborto por dá cá esta palha. É sempre uma intervenção traumática, com que têm de viver para o resto da vida.
4º- Trata-se de sobretudo um problema de saúde pública, de independemente das crenças de cada um, impedir que mais mulheres sofram às mãos de carniceiros.
Isto é completamente verdade, mas o problema vai residir essencialmente nos regulamentos e nos mecanismos que vão ter de ser criados para que quem escolher abortar o possa fazer condignamente e em tempo útil.
Sinceramente, acho que esta alteração só vai acabar com os processos vergonhosos contra mulheres que abortaram, o resto vai permanecer igual.
5º- A pergunta do referendo:
"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"
E podia dizer muito mais, mas não me apetece.
Por mim, digo em plena consciência que o sentido do meu voto vai ser um rotundo SIM no boletim do referendo.
Basta de carnificina, e de corridas para Espanha.